segunda-feira, 14 de maio de 2012

Os três fios de cabelo de ouro do Diabo: uma história atemporal



                                         Capa do romance publicado pela Luzeiro com ilustrações
                                                 em estilo clássico de Mestre Severino Ramos


Os três fios de cabelo de ouro do Diabo, história atemporal que figura nos Marchen dos Irmãos Grimm, mereceu do poeta Josué Gonçalves de Araújo uma vigorosa versão em cordel. É, seguramente, a obra-mestra de Josué, autor nascido em Marabá Paulista, interior de São Paulo, mas com raízes culturais nordestinas, pois é filho de baianos. Com este trabalho ele atinge a maturidade criativa, já demonstrada em O coronel avarento, um começo promissor mas ainda reclamando ajustes, e O mistério da pele da novilha, que dá novo tratamento à figura do viajor sacrílego, o Judeu Errante, que saltou do folclore para a literatura.

Em Os três fios de cabelo de ouro do Diabo, romance que conheci em pré-produção, a narrativa original ganha um sabor bem brasileiro graças aos muitos apelativos com que o autor retrata o “príncipe das trevas”. O conto, apesar de figurar na famosa coletânea dos Grimm, não é, em sua origem, alemão. Há registros em outras partes do mundo. No livro Contos populares da Espanha, que, por estas bandas, foi publicado pela Landy Editora, há uma versão interessantíssima. No interior da Bahia, anotei uma versão, inédita, em que o rei vilão desaparece, cedendo lugar ao fazendeiro, que obriga sua comadre pobre a empreender a façanha considerada impossível. 


Josué, no entanto, mesmo fiel à narrativa em que se baseia, imprime a sua marca autoral, buscando as sobrevivências míticas, a exemplo da crença da infalibilidade do destino e dos personagens arquetípicos como o barqueiro que transporta o herói ao Hades (reminiscência de Caronte). Há um conto iugoslavo em que o rio é humanizado e, em troca do transporte do herói, exige deste uma resposta. A invocação aos céus, da segunda estrofe, comprova o parentesco deste trabalho com a poesia épica, ou com aquilo que Ezra Pound definia como melopeia:

Alegre, por não ser Deus,
O nosso Pai Soberano,
Peço aos céus inspiração
Para tratar de um profano
E de um dos grandes pecados
Que persegue o ser humano.

A primeira parte do romance segue a linha dos contos novelescos, sem a presença do maravilhoso, com exceção da previsão miraculosa. É o mesmo enredo de A princesa Anabela e o filho do lenhador, de Severino Borges, em que o herói é porta-voz de uma mensagem que, se entregue ao destinatário, significará a sua morte. A segunda pertence aos contos maravilhosos propriamente ditos, trazendo o que Joseph Campbell, em O herói de mil faces, define como a jornada do herói.

Os irmãos Grimm recolheram outro conto com enredo semelhante, O grifo, comprovando que o Diabo que figura no conto não é o fantasma teológico da Igreja católica, mas uma adaptação de criaturas de crenças de origens diversas, muitas delas anteriores ao cristianismo. O Diabo, portanto, não é o dos pesadelos medievais que Portugal transplantou para o Brasil e que índios e escravos ajudaram a recompor, “ampliando-lhe domínio e formas sem que lhe dessem nascimento”, conforme depõe, com autoridade inquestionável, Câmara Cascudo. É a natureza desconhecida, o rio da morte, que também é vida, o limiar que o herói deve transpor para cumprir ou, que sabe, tornar-se senhor de seu destino. É desse rito de passagem, estudado por James Frazer em The golden bough, que trata esta história. Felizmente, a literatura de cordel encontrou alguém que a recontasse com rigor criativo e amorosa entrega ao ofício que também é vocação.